Terça-feira é dia de celebrar a Memória de Zumbi dos Palmares.
E através do historiador Eduardo Silva descubro o quilombo que existiu na Zona Sul do Rio.
Pois não é que o Alto Leblon já teve um dia seu quilombo ?
Antes de tudo é preciso deixar bem claro.
O Quilombo das Camélias, assim se chamava, não foi um quilombo heróico, guerreiro, como o mocambo de Zumbi, de Acotirene, de Dambrabaga, de Aqultume (da mãe de Zumbi), e de toda a confederação chamada de Palmares.
Lendo Eduardo Silva aprendi que existiram duas levas de quilombos.
A primeira é chamada pelos historiadores de quilombo rompimento.
Nestes, os quilombolas preservavam o esconderijo, o segredo de guerra, protegiam suas lideranças de todo tipo de inimigo ou forasteiro.
Mas, depois, vieram os quilombos abolicionistas.
Nesses as lideranças eram conhecidas, cidadãos bem articulados politicamente, gente que fazia intermediação entre os fugitivos e a sociedade.
O Quilombo do Alto Leblon foi assim.
* Outros Quilombos
Muitos paulistanos, legítimos ou importados como eu, não sabem.
Mas Jabaquara já foi um quilombo abolicionista.
Aliás, uma das maiores colônias de fugitivos da história.
O Quilombo do Jabaquara se organizou em torno da casa de campo de um abolicionista.
Os quilombolas erguiam seus barracos com o dinheiro recolhido entre pessoas de bem e comerciantes de Santos.
A população local, inclusive as senhoras de bom nome, protegiam o quilombo das investidas policiais.
E assim como as socialites que hoje em dia se vangloriam de suas ações sociais, as senhoras da época também consideravam um padrão de glória ajudar escravos.
Quintino de Lacerda, o chefe do quilombo, morreu rico, deixou bens, móveis e imóveis para os herdeiros, incluindo um tesouro em jóias de ouro e moedas de prata.
Não foi um general indomável como Zumbi.
Teria sido um administrador, articulador, líder populista, uma espécie de intermediário entre o quilombo e a sociedade ao redor.
Já o quilombo do Leblon, seu idealizador, ou chefe, foi um português.
José de Seixas Magalhães.
Segundo Eduardo, Seixas era um homem de idéias avançadas.
Fabricava e vendia malas e sacos de viagem na Rua Gonçalves Dias, no centro do Rio.
Uma espécie de Monsieur Louis Vuitton da época.
Suas malas eram feitas com os mais modernos recursos tecnológicos de então, as máqinas a vapor.
Eram reconhecidas internacionalmente e chegaram a ganhar prêmio na Exposição de Viena.
A história do quilombo começa com ele porque além da fábrica a vapor, o português Seixas também tinha uma chácara no Leblon.
Lá cultivava flores com ajuda de escravos fugidos.
Seixas ajudava os fugitivos e os escondia na chácara.
Tudo com ajuda dos principais abolicionistas da capital do Império,
A chácara de flores, que também podia ser chamada de 'a floricultura do Seixas', era conhecida mais ou menos abertamente como o quilombo Leblond.
Ou quilombo Le Bloon.
Sendo o Leblon então um remoto e, nas divertidas palavras do historiador, ortograficamente ainda incerto subúrbio à beira-mar.
E era lá que Seixas cultivava suas famosas camélias, símbolo do movimento abolicionista.
* As Camélias
Assim como ainda hoje, as camélias não eram uma flor comum, natural da terra e que se encontravam soltas na natureza.
Era uma flor estrangeira, cheia de não-me-toques com o sol.
Precisava de know-how, ambiente, mão-de-obra, técnica de cultivo e cuidados especiais.
Daí termos associado as camélias ao símbolo de refinamento, sofisticação.
Além da cumplicidade dos abolicionistas cariocas, Seixas contava com a proteção da própria Princesa Isabel.
É que era ele quem fornecia camélias ao Palácio das Laranjeiras, então residência da Princesa, hoje sede do governo do Estado por onde já passaram até Garotinho e Rosinha, ó céus !
Mas, voltando à história, as camélias do Leblon enfeitavam não só a mesa de trabalho de Dona Isabel, como ainda sua capela particular, onde a Princesa se apegava a Deus e fazia suas orações.
* As Batucadas
Eduardo nos presta um favor histórico ao lembrar que tudo isso pode parecer muito bacana e tal, mas que a simples existência de um quilombo assim tão atuante e tão simbólico não podia deixar de ser um escândalo público permanente.
Perpetrado nas barbas da polícia, afirma ele.
O quilombo do Leblon era um ícone do movimento abolicionista.
Base simbólica e trunfo político.
E ninguém parecia muito interessado em dissimular ou esconder a existência do quilombo.
Nem o Seixas nem os amigos pró-fim da Escravatura.
Esses, então, promoviam lá ótimas festas de confraternização.
Batucadas animadíssimas, observa Silva.
Como uma que ficou famosa.
A de 13 de março de 1886.
Aniversário do Seixas.
A turma abolicionista passou a noite toda na farra do Leblon e só lembrou de voltar altas horas da madrugada.
Como em todo fim de festa da qual ninguém quer ir embora, lá foram eles em animada cantoria pelo caminho.
Os quilombolas na maior folga do mundo tocando suas violas.
[Eduardo Silva escreve tão divertidamente que eu até consigo imaginar a cena.]
E os abolicionistas aos gritos sediciosos de “Vivam os escravos fugidos!”
Isso durante todo o percurso a pé.
Do quilombo até chegar ao Largo das Três Vendas, na Gávea, onde ficava o ponto final do bondinho puxado a burro que os levaria de volta à civilização.
Pois bem.
Quando o chefe de polícia, desembargador Coelho Bastos, o famoso “rapa-coco”, quis agir e pôr fim à cantoria abolicionista que se fazia na Gávea, no ponto final dos bondes, Seixas foi protegido pela própria Princesa Isabel e, por trás dela, pelo Imperador do Brasil, que, segundo consta, pediu ao Barão de Cotegipe que encerrasse o caso sem maiores formalidades ou investigações.
* O Quilombo Da Princesa
Segundo Eduardo Silva, a Princesa Isabel também protegia fugitivos em Petrópolis.
O testemunho é do abolicionista negro André Rebouças, que tudo registrava em uma caderneta implacável.
É por isso que hoje se sabe, com dados precisos, que no dia 4 de maio de 1888, “almoçaram no Palácio Imperial 14 africanos fugidos das Fazendas circunvizinhas de Petrópolis”.
E mais: todo o esquema de promoção de fugas e alojamento de escravos foi montado pela própria Princesa Isabel.
Petrópolis era mesmo uma cidade abolicionista.
O proprietário do Hotel Bragança chegou a esconder 30 fugitivos em sua fazenda nos arredores da cidade.
O advogado Marcos Fioravanti era uma espécie de coordenador geral das fugas.
Não faltava ao esquema nem mesmo o apoio de importantes damas da corte, como Madame Avelar e Cecília, condessa da Estrela, companheiras fiéis de Isabel e também abolicionistas da gema.
Às vésperas da Abolição final, conforme anotou Rebouças, já subiam a mais de mil os fugitivos “acolhidos” e “hospedados” sob os auspícios de Dona Isabel.
André Rebouças, intelectual de prestígio na época, era quem fazia a ponte entre o esquema de fugas montado pela Princesa, em Petrópolis, e o alto comando do movimento abolicionista no Rio de Janeiro, a turma do Joaquim Nabuco e do José Carlos do Patrocínio.
* As Camelias e Os Crisântemos
E assim lá continuava a Princesa a receber calmamente seus ramalhetes de camélias subversivas.
Assim como no filme de Zhang Yimou, A Maldição dos Crisântemos, do qual já falei aqui no Migrante, as camélias se tornaram um símbolo político.
Ainda mais se fossem as legítimas 'camélias do Leblon' ou 'camélias da Abolição'.
De vez em quando a Princesa ousava aparecer em público com uma dessas flores do Leblon no vestido.
Os jornais, claro, reparavam.
O simbolismo entrou para a história.
Até na hora da assinatura da Lei Áurea, o presidente da Confederação Abolicionista, João Clapp, se aproximou da Princesa e lhe entregou solenemente um mimoso buquê de camélias artificiais.
O imigrante Seixas não fez por menos.
Em seguida a João Clapp, o honrado fabricante de malas passou às mãos da Princesa outro belíssimo buquê de camélias.
Desta vez, contudo, camélias naturais, vindas diretamente do quilombo do Leblon.
Assim como os crisântemos chineses de Zhang Yimou, as camélias foram usadas como uma espécie de código através do qual os abolicionistas em ações mais perigosas, ou ilegais, como apoiar fugas e arranjar esconderijo para fugitivos, podiam ser identificados.
Um escravo de São Paulo, por exemplo, que fosse parar no Rio de Janeiro, podia identificar imediatamente seus possíveis aliados, já na plataforma de desembarque da Estação D. Pedro II, simplesmente pelo uso de uma dessas flores ao peito, do lado do coração.
Caso o fugitivo ignorasse totalmente os princípios básicos dessa semiótica, dificilmente poderia contar com a proteção da poderosa Confederação Abolicionista, fundada em 1883.
Naquele tempo, usar uma camélia na lapela, ou cultivá-la acintosamente no jardim de casa, era quase uma confissão de fé abolicionista.
Alguns pés remanescentes desse tempo simbólico ainda podem ser encontrados em velhos jardins da cidade do Rio de Janeiro.
São documentos vivos da história do Brasil.
O livro de Eduardo Silva, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, foi lançado em 2003, pela Companhia das Letras.
Quem quiser ler na íntegra o artigo de onde retirei as informações acima pode acessar aqui.
E só pra terminar, lendo Eduardo Silva descobri que na Casa de Rui Barbosa (ferrenho abolicionista) ainda hoje existem três pés de camélias.
Dois no jardim da frente.
E um embaixo da janela do quarto de dormir de Rui.
sábado, 17 de novembro de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário