Neste momento sou a feliz proprietária do livro Africa, de Sebastião Salgado, da Taschen.
Autografado.
Pedi a Sebastião para autografar uma foto específica.
A da página 139.
Ele autografou e ainda me deixou uma dedicatória na página ao lado.
A foto em questão não é essa aí.
Bloguei esta porque ela representa mais a discussão a seguir.
Qualquer dia posto aqui a tal foto autografada.
É a de um lindo lago formado na cratera do vulcão Bisoke.
A foto de Salgado foi tirada em 2004.
Pedi que ele a autografasse porque estive lá em 2002.
O vulcão fica no Parque do Virunga, fronteira da República Democrática do Congo com Ruanda.
Lugar que quando se conhece, nunca mais se esquece.
Conhecer Sebastião Salgado e Lélia, esposa e colaboradora, com quem assina o livro, foi um prazer.
Sebastião faz parte de uma categoria especial de pessoas.
Pode-se amar seu trabalho ou odiá-lo.
Mas não se pode ignorá-lo.
E assim é com suas idéias.
Você pode não concordar com elas.
Mas deve pensar sobre elas.
Para minha surpresa, me identifiquei muito com várias coisas colocadas em discussão por ele na coletiva de lançamento do livro aqui no Brasil.
Pra começar, seu discurso é claro como suas fotos.
Agudo.
Sebastião Salgado é um homem de fala direta.
Há quem a interprete como arrogante.
Entendo, mas eu a assimilo como o discurso de alguém passional com um ponto de vista a defender.
E talvez seja essa passionalidade que faça suas fotos brilharem, provocarem, incomodarem, emocionarem.
Não deve ser a toa, o por que de tanta gente passar horas discutindo sua obra.
* Ideologia & Consciência
Para Sebastião Salgado, fotografia é registro de realidade.
E, no caso dele, a função primeira é de reportagem.
Sebastião é categórico.
'Você não fotografa tudo.'
'Você fotografa com seu subconsciente, com sua ideologia', diz ele.
E eu concordo.
Respirando aliviada chego à conclusão de que Sebastião Salgado e eu acreditamos que a imparcialidade do jornalismo já não é nem caso de uma questão utópica, é impossível.
Pra ser mais uma vez sincera acho o discurso da imparcialidade até cretino, mas, bem, isso é assunto para um outro dia.
* O Fotógrafo & O Tempo
Somando-se em segundos, pergunta ele, quanto tempo daria 250 fotos na África ?
Se uma foto é feita em 1 segundo de um click, a conta é fácil.
Um livro de 250 fotos tem 250 segundos de imagem.
Pouco mais de 4 minutos, faço a conta mentalmente.
Pois é.
Só sendo Sebastião Salgado para que esses 4 minutos sejam tão inquietantes.
Já são 32 anos fotografando a África.
Dos grandes fotógrafos talvez seja Salgado o que mais fotografou o continente em conta de anos.
E eu gostei de conhecer a relação dele com o tempo.
Para ele, é necessário muito tempo para fazer fotografias.
'A curto prazo', afirma, 'você só volta com aquilo [com o] que você foi'.
Volta com a sua pré-análise, é o que ele quer dizer.
Volta com sua mesma visão inicial, a que te levou até ali.
'Quando você passa tempo, você aprende'.
Para ser significativo, um trabalho tem que ter tempo de assimilação, acredita.
E na qualidade de quem já foi inúmeras vezes à África, por amor ao continente e por trabalho, tenho que concordar com ele.
* As Fotos Mudando A Vida
As primeiras fotografias profissionais de Sebastião Salgado foram feitas na África.
Antes ele era economista.
Em 1971, em uma missão do Banco Mundial, foi ao Quênia desenvolver um trabalho sobre o café.
Levou uma câmera.
Fato que mudou sua vida.
'Fotografando, tive uma outra relação com as pessoas. Aquilo me encantou. Voltei e passei a fotografar. Nunca mais parei.'
Em 1973, Sebastião Salgado começou a fotografar profissionalmente o continente, mais precisamente no Niger, onde ainda quer voltar para fotografar os tuaregues.
Só não foi este ano por conta dos combates das guerrilhas.
Em janeiro de 1974, fotografava a Etiópia.
A qual voltará em 2009 para um novo projeto.
Nas últimas três décadas, Sebastião não parou de voltar à África.
Nem vai parar.
Pergunto a ele o que ele ainda não fez no continente nestes 32 anos.
O que ainda falta.
O que ele ainda quer fazer.
Que já não tenha feito.
'Os bushmen, os tuaregues, Madagascar', cita em tom de quem ainda tem uma enorme lista de desejos a se realizarem.
* A Intenção De Uma Foto.
'A África é um lugar que é a minha casa.'
E na frase seguinte revela o que se passa em seu inconsciente naquele um segundo de cada uma de suas 250 fotos publicadas neste livro.
'Fotografia do ser humano, se não for pra você homenagear a pessoa com a dignidade dela, não tem função'.
E é deste ponto que partimos em direção à discussão que mais se ouve quando se fala do trabalho de Salgado.
* Miséria, Estética & Ética
'Eu DISCORDO, eu não fotografo a miséria não !'
Pronto, finalmente chegamos aonde todos queriam chegar.
Perguntar a ele, em pessoa, o que ele acha das críticas de que ele estetiza a miséria, dá beleza ao sofrimento, para que nossa alma culpada se apazigue perante a crueldade da desigualdade social, da qual somos agentes e fazemos parte.
Sim, anos depois de responder à mesma pergunta, Sebastião Salgado ainda eleva a voz para respondê-la.
Se agiganta na cadeira.
Olha, com aquele seu olhar faiscante, nos olhos de quem pergunta.
Se inclina para responder.
E eu penso, é quando a gente se altera que pela boca sai a verdade calando todo o discurso racional pré-concebido.
'Por que pobre tem que ser feio ?', pergunta ele.
'Ninguém critica as fotos do Richard Avedon quando ele fotografa a alta burguesia americana'.
'O que é bonito ?'
'O que é feio ?'
'O que é a realidade ?'
São algumas das frases de Sebastião Salgado para defender seu inconsciente, sua carreira, seu modo de viver e de ver a vida.
E eu, intimamente, aplaudo.
Sim, Sebastião Salgado ainda fala 'alta burguesia'.
Resquício, talvez, de mais de trinta anos na França, sorrio.
Mas, a quem interessar possa, também sou contra as críticas de estetização da miséria.
Alguns dias atrás, até postei no DocBlog, de Carlos Alberto Mattos, um parabéns a Marcos Prado, vítima da mesma crítica, por seu trabalho de documentarista no lixão de Gramado, Baixada Fluminense, o Rio dos 40 graus.
Então, concordo com Salgado, será que não há beleza alguma na vida de um miserável ?
É proibido, é crime, tentar mostrar onde está ali, na desumanidade, a beleza e o heroísmo da dignidade ?
Só os ricos são belos ?
'Não estou de acordo que [o livro] representa a miséria, a feiúra e a dor', afirma.
'E a dor ?', pergunta.
A dor, para ele, é muito mais feia.
Diz que as fotos mais feias que considera já ter feito na vida, foram aqui em São Paulo.
Uma senhora que morreu sozinha, abandonada, por tudo e por todos, dentro de um apartamento.
Só foi descoberta depois que o corpo putrefato passou a incomodar os vizinhos.
'[África] Não é um livro, como vocês dizem, 'duro'. É um livro que retrata dignidade, solidariedade nas relações humanas'.
* Técnica & Influência
É por isso que eu gosto de entrevistar pessoas passionais.
'Eu não vou destruir a beleza de um campo de refugiados com uma grande angular, com uma tele.'
Assim é Sebastião Salgado.
Categórico em seu ponto de vista de fotógrafo.
Também me pareceu levemente irritado ao responder, talvez pela ducentésima vez, se, por trabalhar na Magnum, foi influenciado por Bresson & Cappa.
'Não acho', diz ele.
'Em comum tivemos o planeta'.
'Bill Brandt me influenciou muito mais que Bresson e Cappa', afirma.
Para em seguida dizer que 'é muito difícil dizer que um fotógrafo influencia o outro'.
Contraditório, não ?
Mas o raciocínio de Salgado é que 'você fotografa a luz da sua infância, onde você nasceu, com [fotografias] do seu pai, sua mãe.'
'Ou você tem seu estilo, seu corte, ou ...'
'Na hora da reportagem, não dá [tempo] pra fazer 'Ai, Bresson fez assim ...'
*O Futuro Da África
'Fotografia, sozinha, não faz nada'.
É o que ele responde quando alguém pergunta se seu trabalho é um modo de fazer algo social pela África.
'É difícil você aceitar a distribuição da miséria, a má divisão.'
'Mas quem sabe você ajuda as pessoas a falar, através da sua lente.'
Sebastião Salgado, pra quem não sabe, é fã de Lula.
Diz gostar muito do presidente.
Promete - e cumpre - que vai mandar dois livros autografados para Lula e Dona Marisa.
Mais tarde, são os dois primeiros livros que ele autografa, antes mesmo de se sentar à mesa dos autógrafos, onde admiradores em fila já o esperavam há pelo menos meia-hora.
Reclama do afastamento de Brasil e África.
Em sua opinião, melhorou um pouco no governo FH, mas é Lula quem está fazendo o Brasil 'assumir uma posição interessante na África'.
E, quanta sincronicidade, é justamente nessa hora que, para surpresa dos presentes, alguém se levanta na platéia do teatro onde acontecia a entrevista, pede desculpas por interromper, mas quer mandar um beijo antes de sair para dar uma aula.
O senador Eduardo Suplicy.
Salgado e Lélia imediatamente se levantam, felizes, e surpresos, em rever o amigo.
Pedem que ele aguarde só mais um pouquinho porque a entrevista já iria acabar.
O senador diz que lamenta mas realmente não pode, já está atrasado para a aula que tem que dar.
O casal o chama, então, ao palco para um beijo e um abraço.
Suplicy, claro, não hesita.
Sobe e é aquele festival de foto.
Os fotógrafos se acotovelam, um frenesi.
Os amigos se abraçam, trocam cumprimentos verdadeiramente carinhosos.
Eita photo-op, penso eu, lembrando do nosso senador doidinho cantando 'Blowin' In The Wind' na tribuna do Senado.
Quando Suplicy sai, a entrevista segue seu passo.
Eu volto às declarações de Salgado minutos antes do evento suplicyano.
'Algumas coisas são as mesmas de 30 anos'.
'A África tem que mudar forte.'
O fotógrafo fala de Darfur.
E expõe o que considero seu sonho de um dia ver o mundo caminhar em direcão ao comércio justo.
'É preciso eliminar quem explora a África', afirma.
Cita Goma, cidade destruída por um vulcão, às margens do lago Kivu, onde também já estive, palco do massacre de Ruanda.
E talvez, inconscientemente, seja essa lembrança que me leva a fazer mais uma pergunta.
'E onde a África mudou ?'
'Nesses 30 anos, você que esteve lá tantas vezes, onde ela avançou ?', questiono.
'Moçambique', ele responde, 'o acordo de paz'.
Cita Botswana, Namíbia, Etiópia, cada qual à sua maneira, em sua visão, teria dado passos em direção a direitos básicos, à dignidade humana.
'A África vai ter que passar por um processo de auto-correção.'
'As correções, as leis, o processo é difícil, a longo prazo.', diz ele, num tom entre o resignado e o melancólico.
Melancolia talvez não seja a impressão final que admiradores e críticos associem à sua fala.
Mas eu gostei de conhecer um pouco mais sobre Sebastião Salgado.
O fotojornalista, amado e odiado, que não hesita em olhar nos olhos pra te dizer.
'Eu não tenho a verdade, eu só fui lá.'
sábado, 10 de novembro de 2007
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2 comentários:
Que texto! Li e reli para vê se não tinha perdido nada.
E eu sei de que lago vc está falando - é aquele onde vários corpos foram jogados? E que as pessoas usam a água para beber, cozinhar, navegar...
Ontem não te liguei porque comi um toblerone preto inteiro no café da manhã e fiquei o dia todo enjoada... Ai, mulheres balzacas são muito exageradas.
[oi ana /
o lago da foto que o Sebastião Salgado autografou é o do vulcão /
um lago verde verde verde que só se vê quando se chega lá em cima na borda da cratera /
já o Kivu é o lago onde foram jogados mais de um milhão de hutus mortos /
o Kivu também é bonito, mas é uma beleza diferente /
é um lago enorme, daqueles em que não se avista por quilômetros a outra margem /
às vezes é coberto por uma névoa /
sim, lá se pesca, se lava roupa, se navega em balsas, se bebe água, se vive a vida como se faz há séculos /
um lugar marcado pela cicatriz do genocídio /
onde assustadoramente a vida segue sem muita reflexão /
porque na África a primeira missão do dia é sobreviver /
é um lugar triste pra se conhecer /
mas importante /
beijocas ]
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