sábado, 3 de novembro de 2007

Saudade

O Brasil perdeu esta semana uma figura raríssima.
Elizabeth Hart.
A voz a qual nos acostumamos ouvir nas noites do Oscar.
Antes de tradutora exemplar, Elizabeth é a mãe de um querido companheiro de trabalho, Eric Hart.
No país em que a unanimidade é mal vista e chamada, por mestres, de burra, Elizabeth conseguiu o impossível.
Ser unanimemente elogiada.
Exerimente dar um Google com o nome dela.
Em todas as citações, só há elogios.
Pudera.
Dona de uma voz charmosamente anasalada e, ao mesmo tempo, cristalina, Elizabeth fazia uma tradução impecável.
E só quem faz tradução simultânea sabe o quanto é necessário ser bom nos dois idiomas para fazer um trabalho de tamanha qualidade.
Elizabeth Hart vai fazer falta.
Afinal, durante todos esses anos nos acostumamos, nas manhãs pós-Oscar, a falar mal de tudo e de todos.
Podíamos criticar a gravata do Rubens Ewald Filho, esculhambar o Jabor, debochar das gafes.
Mas nunca ouvi ninguém falar mal de Elizabeth.
A conheci pessoalmente em 98, ano em que fui morar em Nova Iorque.
Eu, Eric e ela fomos assistir a Chicago, na Broadway.
Na época, a divina Ute Lemper fazia a Velma, substituindo Bebe Neuwirth.
Eu, que jamais havia imaginado ter o privilégio de ver Ute Lemper ao vivo, quicava de excitaçåo.
Quando o musical começou, um susto.
Eu já havia morado antes nos EUA, na Califórnia, comecei a falar inglês aos 4 anos na escola, enfim, sempre me virei razoavelmente bem na língua do bardo, mas Chicago era pesada, ou rápida, demais pro meu ouvido.
É que eu tinha chegado havia apenas uma ou duas semanas, e aquela gíria de gângster, com o sotaque da Chicago da Lei Seca, dos anos 20, me abateu a tiros.
Na parte dos diálogos, eu não entendia patavinas.
Cochichei para Elizabeth, 'nossa, difícil esse inglês de 1926, né ?'.
E ela gentilmente passou a traduzir pra mim, baixinho, naquela voz só dela, as frases mais importantes.
Na saída, eu, claro, entre agradecida e maravilhada, só pensava na minha sorte.
Ver Ute Lemper, na Broadway, com tradução simultânea, e personal, da melhor tradutora do Brasil.
Não é a toa que sempre digo que posso reclamar de tudo nessa vida, menos da sorte.
E olha que essa ainda não é a minha melhor estória com Elizabeth Hart.
Pensa que acabou ?
Tem mais.
Saindo do teatro, ficamos eu, ela e Eric naquela de 'onde vamos comer alguma coisa ?'.
E Elizabeth perguntou.
'Você gosta de cheesecake ?
- Vou te levar ao meu cheesecake favorito de NY'.
Eu ainda não sabia.
Mas naquele momento estava sendo levada a um lugar que acabou vindo a ocupar um espaço enorme no meu coração.
Leo Lindy's.
Na esquina da Broadway com a 45th, em plena Times Square, debaixo da MTV.
Nem sei dizer quantas dezenas de vezes depois voltei àquele diner empoeiradinho.
Quantas vezes, carregada de sacolas da Virgin, sentei à minha mesa quase cativa, na janela, só pra ver a neve, a chuva, o sol, a luz do outono, naquele frenesi que é sempre Times Square.
Leo Lindy's, você pode ler a incrível história desse lugar aqui, começou como deli em 1921.
Fez parte de toda a história da Broadway e testemunhou todo auge e decadência dos teatros.
Pelo que entendi naquela tarde, também fez parte da história de Elizabeth, que morou nos EUA por vários anos.
Ela apaixonada pelo cheesecake.
Eu pelo sanduíche de salmão que descobri naquele dia, e ao qual fui fiel durante muitos anos.
Conversamos um pouco de tudo, até do porquê de se falar cheesecake no feminino, quem o considera uma torta, ou no masculino, se achar que é bolo.
Mas o motivo de eu, nesses quase dez anos, nunca ter esquecido aquele dia, é que foi em meio a tudo isso que Elizabeth Hart me ensinou o que há de mais precioso para se aprender em Nova York.
Lá pelas tantas, foi com aquela voz impositiva pelo ofício da profissão, e doce pela generosidade de traduzir, ensinar, repassar algum conhecimento, que ela me deu um conselho.
Disse algo assim.
'Você que está chegando agora para morar em Nova Iorque vai ver que todo mundo sempre fala no 'melhor isso de NY, melhor aquilo de NY', mas não acredite.
Não existe o 'melhor de NY', existe o 'seu lugar favorito de NY'.
Esse aqui, disse despretensiosamente entre uma garfada e outra, não sei se é o melhor cheesecake de NY.
Dizem que é, está em todos os guias, mas isso não importa.
Pra mim, é o 'meu melhor cheesecake de NY'.
E assim foi.
Nos despedimos e eu, pena, nunca mais vi Elizabeth Hart.
O Eric, com quem trabalhei, voltei a rever em Londres, e no Rio de Janeiro várias vezes.
Mas o conselho de Elizabeth nunca me saiu da cabeça.
Os anos se passaram e eu cansei de hospedar amigos afoitos chegando a Nova Iorque com guias e dicas, pedaços de papéis anotados, caderninhos, com a obrigação turística de conhecer o melhor disso e o melhor daquilo.
Eu acompanhava, ia na onda e tal, mas, por dentro, sorria descansada, sempre lembrando do que Elizabeth tinha me ensinado.
Muito melhor do que 'o melhor pastrami de NY, é o 'seu pastrami favorito em NY'.
Foi uma espécie de lição que me permitiu desfrutar anos incríveis na cidade, sem aquela ansiedade de tudo que é citado ser necessário ver, conhecer, provar.
Voltei ao Brasil e, em 2005, após três anos sem visitar NY, chegando à cidade, corri a Times Square.
Meus olhos se encheram d'água.
O Leo Lindy's da minha esquina não estava mais lá.
Tinha sido fechado.
Em seu lugar vive agora uma agência monstrenga do Bank of America.
Fiquei triste.
Mas daí lembrei da Elizabeth.
Foi a última vez em que me lembro de ter recordado dela, até esta semana, quando, tristemente, li sobre seu falecimento nas agências.
Não importa que meu diner favorito tenha fechado as portas, pensei, evocando suas palavras.
Importa que eu tive um diner favorito.
E que, pra mim, o Leo Lindy's ainda existe.
Vai ser pra sempre 'meu melhor diner de NY'.

3 comentários:

mutantix disse...

ah, new york, new york...
adorei o texto. eu dormindo e tu blogando. quanta coisa, guta!

Anônimo disse...

Lia e me lembrava da primeira vez que vi neve nova na minha vida, foi em NY, você me disse: "amanhã vai nevar". Acorde e corra pro Central Park. No meio da noite, despertei e pela pouca luz que refletia na janela vi uns floquinhos. Mas não levantei, não. Fechei os olhos confiando no que você havia vaticinado: "Vai nevar amanhã, corra pro Central Park". E dali até o Natal nevou sem parar. Foi um White Christmas, com musiquinha de natal por todos os cantos, melancólico, lindo! NY para mim não é nenhum lugar especial. É uma sensação de linda melancolia branca, invernal; e um ouro que banha a cidade inteira, aquele lindo ouro que no outono é mais dourado e no verão é mais duradouro. Ambos se espalham pelo sul de Manhathan, um espigão espelhado refletindo no diante e no outro, ad infinitum. Barras e barras de ouro em forma de torres. Ouro e melancolia. Uma melancolia doída, uma solidão profunda, é pre3ciso sempre ter alguém por perto porque senão dói muito...mas bela...

Cristiana Soares disse...

...chuif... que lindo... alguém tem um lencinho?